Mudança de sexo em menores: é possível falar em autonomia e consentimento livre e informado?

Nossa sociedade está em constante evolução, trazendo à tona questões complexas que nos desafiam a repensar conceitos e buscar soluções equilibradas. Um desses temas é o da mudança de sexo em menores de idade, uma discussão que envolve direitos individuais, autonomia, ética médica e bem-estar dos jovens. Neste artigo, vamos explorar de forma crítica as implicações e dilemas dessas intervenções, buscando uma visão abrangente e responsável sobre o assunto.

É importante salientar que a busca pela autodeterminação e pela expressão da identidade de gênero é um aspecto fundamental para garantir o respeito e a inclusão das pessoas. No entanto, quando se trata de menores de idade, é crucial considerar o contexto específico do desenvolvimento físico, emocional e psicológico desses jovens para a tomada de decisões. Estamos lidando com intervenções irreversíveis que podem ter impactos profundos em suas vidas.

O Conselho Federal de Medicina (CFM) estabelece, por meio da Resolução nº 2.265/2019, diretrizes que regulamentam as terapias e cirurgias de mudança de sexo em menores de idade. Segundo essas diretrizes, menores de 16 anos podem realizar bloqueio puberal (interrupção da produção de hormônios sexuais) e hormonioterapia cruzada (forma de reposição hormonal para feminização ou masculinização, de acordo com sua identidade de gênero). A cirurgia é permitida apenas para maiores de 18 anos. É importante destacar que a realização desses procedimentos requer uma avaliação criteriosa e multidisciplinar, visando garantir que a decisão seja tomada de maneira informada e consciente, levando sempre em consideração o melhor interesse da criança e sua proteção integral.

No entanto, é necessário reconhecer que a aplicação dessas diretrizes nem sempre é uniforme e que há preocupações legítimas em relação à capacidade de um jovem tomar uma decisão tão impactante em uma fase da vida em que está em processo de descobertas e formação de sua identidade. A falta de maturidade emocional e cognitiva pode influenciar a capacidade de compreender plenamente as implicações de uma mudança permanente de gênero. Além disso, é essencial considerar a influência de fatores sociais, culturais e familiares nesse processo.

Dessa forma, é fundamental uma abordagem cautelosa e sensível, que leve em conta a diversidade de experiências e perspectivas, bem como a proteção integral dos menores de idade. É necessário promover um diálogo informado entre profissionais de saúde, pais ou responsáveis legais e o próprio jovem, com uma ênfase na escuta ativa e no apoio psicológico durante todo o processo de tomada de decisão.

Por outro lado, é preciso destacar as leis que regem a capacidade e autonomia dos menores de idade e o princípio da parentalidade responsável. O Código Civil brasileiro considera absolutamente incapaz para os atos da vida civil o menor de 16 anos, que deve ser representado pelos seus pais ou responsáveis legais. Entre 16 e 18 anos, os menores são relativamente incapazes e devem praticar atos da vida civil com assistência daqueles. Ou seja, a lei civil reconhece a idade como fator relevante para o exercício pleno da autonomia do indivíduo, o que inclui a sua decisão quanto a aspectos de sua sexualidade ou identificação de gênero.

Casos como o de Kayla Lovdahl, moradora da Califórnia, Estados Unidos, que está processando o hospital que removeu seus seios aos 13 anos, por sofrer de profundas feridas físicas e emocionais e arrependimentos severos, demonstram a irreversibilidade dos danos físicos e psicológicos que podem ser causados por decisões precipitadas. Isso ressalta a importância de um acompanhamento especializado e uma avaliação cuidadosa de cada caso, considerando a complexidade e a individualidade de cada pessoa envolvida. Ela alega ter sido exposta a influenciadores transgêneros,  chegando a acreditar que também era uma pessoa trans.

É inegável que a mudança de sexo em menores de idade é um assunto complexo e multifacetado. Ao buscarmos um equilíbrio entre o respeito à autodeterminação e a proteção dos jovens, é necessário considerar não apenas a capacidade de consentimento, mas também a capacidade de compreensão plena das consequências envolvidas. Portanto, um diálogo amplo e informado, envolvendo especialistas, família e o próprio menor de idade, é essencial para garantir que as decisões sejam tomadas de maneira responsável e no melhor interesse de todos os envolvidos.

A Importância da Reflexão Cuidadosa na Transição de Gênero

Em meio a discussões sobre a transição de gênero em menores de idade, é crucial considerar as histórias de pessoas que passaram por esse processo e posteriormente se arrependeram. Um exemplo notável é o de Patrick Mitchell, um adolescente australiano que, após iniciar um tratamento hormonal para a transição de gênero, decidiu interromper o processo. Em uma entrevista, Patrick afirmou:  “Comecei a me desenvolver como menina, que era o que eu queria naquele momento, mas agora não é mais o que eu quero… Eu percebi que posso ser feliz sem mudar totalmente quem eu sou”.

Este caso ilustra a complexidade e a seriedade das decisões envolvidas na transição de gênero, especialmente quando se trata de menores de idade. A American College of Pediatricians, por exemplo, alerta para a necessidade de cautela ao apoiar a discordância de gênero como normal, pois isso pode levar mais crianças a procurar “clínicas de gênero”, onde tomarão drogas bloqueadoras da puberdade. Além disso, a mutilação cirúrgica de partes saudáveis do corpo é vista por muitos como desnecessária.

Patrick Mitchell contou a sua história programa de televisão 60 Minutes Australia

Outros casos, como o de Brad Cooper na Grã-Bretanha e Walt Heyer nos Estados Unidos, também destacam os desafios e as consequências potencialmente negativas da transição de gênero. Ambos passaram por processos de transição e depois se arrependeram, enfrentando angústia mental e, em alguns casos, tentativas de suicídio.

Estes casos reforçam a necessidade de uma abordagem cuidadosa e informada para a transição de gênero em menores de idade. É essencial garantir que as decisões sejam tomadas de maneira responsável e no melhor interesse de todos os envolvidos, levando em consideração a capacidade de compreensão plena das consequências envolvidas.

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Esta discussão requer abordagens cautelosas e sensíveis, o diálogo informado, a necessidade de acompanhamento especializado e avaliação cuidadosa de cada caso, além de ressaltar a importância de considerar a capacidade de compreensão plena das consequências envolvidas na mudança de sexo em menores de idade.

Ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, ressaltou a necessidade de aprimoramento da administração pública e do diálogo entre Judiciário e Executivo para enfrentar o alto número de demandas judiciais relacionadas à saúde. Durante a VI Jornada de Direito da Saúde, promovida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e Tribunal de Justiça do Mato Grosso, discutiu-se a importância de encontrar soluções para reduzir o volume de ações judiciais na área da saúde, garantindo o acesso efetivo à saúde sem comprometer o orçamento dos estados e municípios. Além disso, foram apresentadas propostas para aprimorar o sistema de soluções judiciais no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), como agendamentos online, atendimento em prazos razoáveis e redução da necessidade de recorrer ao Judiciário para realizar cirurgias.

Gilmar Mendes, ministro do STF
Queridos leitores, gostaria de expressar meus sinceros agradecimentos por terem dedicado seu tempo e atenção a esta leitura. Abordar o tema da mudança de sexo em menores de idade é de extrema importância para a compreensão dos desafios éticos, legais e de bem-estar envolvidos nesse processo. Espero que este conteúdo tenha contribuído para um diálogo informado e responsável, oferecendo diferentes perspectivas e reflexões relevantes.

É fundamental lembrar que o respeito à autodeterminação, a proteção integral dos jovens e a responsabilidade parental devem ser considerados em conjunto na tomada de decisões relacionadas à mudança de sexo em menores. A busca por soluções equilibradas e a garantia do bem-estar de cada indivíduo são pilares importantes nessa discussão.

Convido vocês a continuarem acompanhando o blog Direito e Saúde, onde abordaremos outros temas relevantes relacionados ao direito, saúde e bem-estar. Estamos comprometidos em fornecer informações atualizadas e embasadas para promover uma sociedade mais inclusiva e justa.

Mais uma vez, agradeço pelo seu interesse e participação. Até a próxima!

Ana Claudia Brandão
Ana Claudia Brandão

Ana Claudia Brandão de Barros Correia Ferraz é uma jurista de destaque e juíza do Estado de Pernambuco. Sua trajetória acadêmica é marcada por sólida formação em Direito, com doutorado pela Universidade Federal de Pernambuco e pós-doutorado na prestigiada Universidad de Salamanca, Espanha, e na renomada Harvard University, Estados Unidos. Sua atuação no meio jurídico abrange áreas complexas e relevantes, com especialização em Biodireito e Bioética, nas quais tem contribuído de forma significativa.

Além de sua atuação no Poder Judiciário, Ana Claudia também se destaca como escritora. Seus artigos e publicações científicas têm sido reconhecidos por sua relevância e impacto no cenário jurídico e acadêmico. Entre suas obras literárias de destaque, estão os livros "Reprodução Humana Assistida e suas Consequências nas Relações de Família: A Filiação e a Origem Genética sob a Perspectiva da Repersonalização" (Editora Juruá, edições 2009 e 2016) e "Filhos para Cura: O Bebê Medicamento como Sujeito de Direito" (Editora Revista dos Tribunais, 2020).

Ana Claudia também é uma colaboradora quinzenal do jornal Folha de Pernambuco, onde escreve sobre temas relacionados a Direito e Saúde. Suas reflexões e análises têm alcançado grande repercussão e contribuído para o debate público em torno de questões jurídicas e de saúde.

Com um currículo acadêmico e profissional impressionante, Ana Claudia Brandão de Barros Correia Ferraz se consolida como uma referência no campo do Direito, especialmente em Biodireito e Bioética. Sua dedicação à pesquisa, seu compromisso com a justiça e sua habilidade como escritora fazem dela uma influente e respeitada figura no meio jurídico, com relevância nacional e internacional.

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