Queridos leitores,
Iniciamos a retrospectiva de 2023 da coluna “Direito e Saúde” e na última coluna do ano vamos finalizar o resumo dos temas aqui abordados e listar os principais desafios para o Direito da Saúde nos próximos anos.
Em continuidade, tratamos do “Acesso a medicamentos de alto custo”. Se, de um lado, a judicialização pode ser vista como um mecanismo de pressão sobre os sistemas de saúde, incentivando revisões de políticas e a inclusão de medicamentos especiais nos protocolos de tratamento, por outro lado, há uma preocupação com o impacto financeiro que essa prática pode gerar nos sistemas de saúde. Dados governamentais revelam que, entre 2010 e 2019, houve um aumento de 727% nos gastos com medicamentos judicializados no Brasil. Essa expressiva elevação dos custos demonstra o impacto financeiro desse processo e a necessidade de buscar soluções equilibradas para garantir o acesso à saúde por todos.
Outro tema que esteve em destaque na mídia foi a inseminação caseira. A prática tem se difundido, acarretando alguns problemas que merecem atenção. Não se trata propriamente de problema de saúde, pois as pessoas que recorrem a essa técnica geralmente não são inférteis, mas enfrentam barreiras biológicas, como casais do mesmo sexo. A procura dessa prática se deve aos altos custos dos procedimentos realizados nas clínicas de reprodução assistida, o que torna inacessível o procedimento para grande parcela da população. A inseminação caseira, embora seja uma alternativa mais acessível do ponto de vista financeiro, traz consigo uma série de riscos, tanto para a saúde da mulher quanto para a criança. Vale lembrar casos de “Doadores” com mais de 500 filhos biológicos…. Além disso, a falta de regulamentação cria um limbo jurídico que pode resultar em problemas futuros, especialmente no que diz respeito ao reconhecimento da dupla maternidade. Ademais, incentivar essa prática contraria princípios de não comercialização de espermatozoides consagrados tanto no âmbito médico como jurídico. É preciso ampliar o acesso às técnicas de reprodução assistida e evitar riscos à saúde dos envolvidos.
A “Saúde mental e cobertura pelos planos de saúde foi outro ponto crucial da nossa conversa. Falamos sobre a importância do cuidado com a saúde mental e como os planos de saúde desempenham um papel vital no acesso a tratamentos adequados. Também tocamos em um assunto inovador: a “integração das religiões afro no Sistema de Saúde Brasileiro”. Aqui refletimos sobre como a espiritualidade e a saúde podem se entrelaçar, trazendo novas perspectivas para o cuidado integral.
As novas regras da publicidade médica – a responsabilidade civil e ética geraram muitas dúvidas. Atentos ao poder influenciador do mundo digital, os médicos clamavam por mais flexibilidade na promoção de seus serviços. E, finalmente, essa flexibilização veio com a publicação da Resolução nº 2336/2023, pelo Conselho Federal de Medicina, que reflete uma tentativa de equilibrar a liberdade dos médicos de promover seus serviços com a necessidade de preservar a integridade e os princípios da profissão. A norma tem sido muito festejada pelos médicos, justamente por contemplar a tão esperada liberdade em postagens em redes sociais, comerciais, etc. Contudo, com mais liberdade, vem, consequentemente, mais responsabilidade. Em uma era onde a informação é difundida em segundos, a veracidade e a ética na publicidade médica são mais vitais do que nunca. A adequação das regras de publicidade médica à realidade social é de suma importância para o desenvolvimento das práticas médicas e difusão da evolução científica. Entretanto, enquanto a medicina busca se adaptar às demandas modernas e às ferramentas de comunicação digital, a essência de sua missão permanece a mesma: priorizar a saúde e o bem-estar do paciente.
Outro assunto abordado na coluna foi a “Doação presumida de órgãos após a morte: um novo horizonte para o Brasil. O tema esteve em evidência em razão de um transplante de coração realizado pelo famoso apresentador de televisão, Faustão, que obteve o órgão de maneira célere, despertando nas pessoas o desejo de ter igual sorte e de entender mais sobre o tema. Nesse compasso, foi proposto o Projeto de Lei nº 1774/2023 que reacendeu a discussão sobre a doação presumida no Brasil, propondo uma alteração na Lei nº 9.434/97. Segundo o projeto, presume-se autorizada a doação post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano, para transplantes ou outra finalidade terapêutica, salvo manifestação em contrário. Todo indivíduo que não desejar dispor de seus órgãos, tecidos ou partes do corpo para doação deverá registrar em documento público de identidade, o seu desejo de não ser doador. A iniciativa é apoiada por diversos deputados e instituições médicas, incluindo o Conselho Federal de Medicina. Portanto, o tema nos convida a refletir sobre nosso papel individual e coletivo nesta caminhada. Como sociedade, temos a responsabilidade de nutrir um diálogo informado e compassivo, que respeite tanto a dignidade humana quanto a dádiva da vida que a doação de órgãos representa. O debate sobre a doação presumida é um passo valioso nessa direção, abrindo caminho para um futuro onde a solidariedade e a empatia guiam nossas ações e legislações, trazendo esperança para aqueles que sonham com a possibilidade de seguir vivo.
Abraçamos a campanha “Outubro rosa, informar para proteger, cuidar para viver”. Trata-se de um movimento internacional de conscientização para o diagnóstico precoce do câncer de mama, lançado no início da década de noventa, pela Fundação Susan G. Komen for the Cure, cujo símbolo é um laço cor de rosa, que foi distribuído aos participantes da primeira Corrida pela Cura, realizada em Nova York (EUA). Desde então, ela passou a ser promovida anualmente, tendo a cor rosa iluminando fachadas de diversos prédios, monumentos justamente para chamar a atenção para a doença. A preocupação com o tema justifica-se pelas estatísticas alarmantes. O câncer de mama é o tipo que mais acomete mulheres em todo o mundo, tanto em países em desenvolvimento quanto em países desenvolvidos. As taxas de incidência variam entre as diferentes regiões do planeta, com as maiores taxas nos países desenvolvidos. A legislação brasileira avançou em termos de garantias aos pacientes, tais como acesso a serviços gratuitos no sistema público de saúde, cobrindo a realização de exames de detecção, acesso rápido ao tratamento e cirurgia de reconstrução mamária. Segundo dados do INCA – Instituto Nacional do Câncer, para o Brasil, foram estimados 73.610 casos novos de câncer de mama em 2023, com um risco estimado de 66,54 casos a cada 100 mil mulheres. Ter acesso à informação segura e de qualidade é um ponto crucial para auxiliar na prevenção e na detecção precoce do câncer de mama.
Divulgar a bioética tem sido finalidade da nossa coluna. Por isso, uma das colunas tratou do “Dia Mundial da bioética e proteção das gerações futuras”. A preocupação com as gerações futuras é um tema central na bioética. Em uma era de desenvolvimento tecnológico acelerado, as decisões de hoje têm implicações de longo alcance para o futuro da humanidade. A bioética nos ajuda a considerar se as ações atuais servem ao bem comum, respeitando os direitos e a dignidade de todos os indivíduos, inclusive aqueles que ainda não nasceram. Percebe-se, assim, que a bioética não é matéria supérflua, mas uma necessidade urgente em um mundo onde o futuro é tecido pela inovação presente. Ela nos desafia a olhar além dos ganhos imediatos e considerar o legado que deixamos para as gerações futuras. Em um cenário em que parece que o homem domina tudo, é imperioso sopesar ações que, a pretexto de progresso, possam trazer relevantes danos às pessoas e aos demais seres vivos, caso não respeitem a ética baseada na dignidade humana.
Matéria de extrema relevância social é o do “Enfrentamento da violência doméstica e direito à saúde”. Falar sobre violência doméstica ainda é um tabu, já que envolve, em regra, a intimidade do lar, frequentemente associado a um refúgio seguro, um espaço de amor e proteção bem como a privacidade das pessoas. No entanto, para muitos, essa imagem idílica está distante da realidade. A violência doméstica, um mal que permeia todas as camadas sociais, transforma o lar em um ambiente de medo e opressão. Essa situação repercute, obviamente, na saúde física e psicológica de todos os envolvidos. O recente caso envolvendo a apresentadora Ana Hickmann e seu ex-marido, Alexandre Correa, ilustra a complexidade e a gravidade da violência doméstica, que muitas vezes se desenrola longe dos olhos do público. Para aquelas que enfrentam a violência doméstica, saber onde e como buscar ajuda é um passo crucial para a segurança e recuperação. A questão, portanto, envolve o direito à saúde das mulheres. É necessário que realmente funcione um sistema de saúde calcado no acolhimento e no suporte, seja nas grandes cidades como nas pequenas comunidades, multidisciplinar e humanizado, para que elas possam realmente se reestruturar. Embora se reconheçam os avanços, são necessárias mais ações para se quebrar paradigmas e preconceitos, superar estereótipos, que fazem com que o problema da violência doméstica seja tratado como invisível ou inexistente. O tema da violência deve ser prioridade nas agendas políticas e presente nos debates com toda a sociedade, pois apenas assim podemos garantir a convivência pacífica, o respeito à diversidade, a proteção da família e da dignidade humana.
Por fim, em atenção aos fenômenos climáticos globais, que acarretaram inclusive mortes, como a ocorrida em show no Rio de Janeiro, em que uma jovem faleceu devido ao calor extremo, chamamos a atenção para o tema “Mudanças climáticas: um alerta para a saúde global”. As mudanças climáticas representam um dos maiores desafios contemporâneos, afetando não apenas o meio ambiente, mas também a saúde pública e os direitos humanos. Entre os dias 30 de novembro e 12 de dezembro ocorreu a COP 28 (28ª Conferência de Mudanças Climáticas da Organização das Nações Unidas em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos. A Conferência reuniu todos os países-membros da ONU para debater estratégias para conter o aquecimento global. É necessário que haja uma abordagem integrada e colaborativa, envolvendo governos, organizações e indivíduos, para proteger a saúde pública e garantir um futuro sustentável. A perspectiva do biodireito e da bioética, através da ecoética, oferece uma base jurídica e ética sólida para orientar essas ações, enfatizando a importância de proteger os direitos fundamentais à saúde e a um ambiente saudável. Não há saúde sem meio-ambiente ecologicamente equilibrado.
Foram muitos os assuntos tratados ao longo deste ano que se finda. Devemos reconhecer os avanços em termos de direito à saúde, mas ainda temos muito o que fazer para diminuir a judicialização, que retrata a inobservância dos deveres constitucionais na prestação dos serviços de saúde, seja na rede pública ou privada. Precisamos avançar e vencer vários desafios.
Dentre eles, podemos listar os principais:
– A desigualdade de acesso à saúde: aproximadamente 34% dos municípios brasileiros não têm serviços privados de saúde, limitando o acesso da população ao SUS. Além disso, apenas cerca de 26,1% da população desfruta dos benefícios da saúde suplementar.
– Mudar o foco do tratamento para a prevenção: O sistema de saúde atual é centrado no tratamento da doença, e não na promoção da saúde e prevenção. Essa abordagem reativa pode levar a consequências adversas, ressaltando a necessidade de estratégias proativas, como a coordenação nos níveis de atenção à saúde (primária, secundária e terciária), para reduzir a duplicação de esforços e gastos desnecessários.
– Desospitalização e descentralização do cuidado: Há uma tendência crescente em direção à desospitalização, com o cuidado sendo cada vez mais descentralizado e realizado em diversos ambientes, como a casa do paciente (via telemedicina), farmácias e outros locais.
– Incorporação tecnológica e perfil digital do paciente: O uso crescente de tecnologia na saúde, incluindo inteligência artificial e a Internet das Coisas Médicas oferece oportunidades para melhorar os resultados de saúde. No entanto, isso também apresenta desafios, como a necessidade de lidar com vulnerabilidades de segurança e a integração de dados em um sistema de saúde aberto (“open health”).
– Segurança da informação: O conceito de saúde aberta é baseado na abertura de dados e informações de saúde em um sistema colaborativo. A implementação desse princípio é crucial para reduzir ineficiências e cumprir a Lei Geral de Proteção dos Dados (LGPD).
– Qualidade do ensino médico – Importante focar em questões éticas, no ensino da bioética, para que a medicina não se torne um mero “negócio”.
– Desafios financeiros: Em um cenário de novas tecnológicas, novos medicamentos e tratamentos que prometem longevidade e de uma medicina cada vez mais personalizada, é preciso reconhecer a finitude dos recursos, a necessidade de equilíbrio econômico financeiros dos contratos, mas, ao mesmo tempo, garantir o direito assegurado em lei para todos os usuários, sejam do setor de saúde público ou privado. Talvez, esse seja o maior desafio em matéria de Direito e Saúde, a sustentabilidade.
Sem dúvida, temos muitos outros a serem vencidos e que precisam de uma abordagem coordenada entre os Poderes constituídos, profissionais de saúde, comunidade e setor privado.
De tudo isso, percebe-se a necessidade de enfoque constante no tema “Direito e Saúde”, que está em acelerado movimento, para que todos possam tomar as melhores decisões em matéria de saúde, dispondo de informação isenta e confiável.
Por isso, enfatizo a minha alegria de poder escrever esta coluna e participar, de alguma forma, do processo informativo dos queridos leitores.
Que em 2024, possamos aperfeiçoar o trabalho, com muitos debates, discussões e compartilhamento de ideias no intuito de contribuir para o direito à saúde.
Feliz ano novo! Com “DIREITO e SAÙDE” para todos nós !!!!!