Judicialização da saúde: o acesso a medicamentos de alto custo

A judicialização de medicamentos de alto custo tem se tornado um tema relevante no contexto da saúde, principalmente em relação ao acesso a tratamentos para doenças raras, crônicas ou graves, tais como câncer, hepatite, HIV, asma, doenças cardiovasculares, entre outras. Esse fenômeno ocorre quando os pacientes buscam no sistema judiciário o direito de obter medicamentos que não estão disponíveis de forma regular nos sistemas de saúde pública ou privada. Neste artigo, exploraremos os aspectos, desafios e perspectivas relacionados à judicialização de medicamentos de alto custo.

O tema traz consigo diversos aspectos importantes a serem considerados. Primeiramente, destaca-se o direito fundamental à saúde, garantido constitucionalmente no art. 196, com assistência integral e universal. No Brasil, a Lei nº 8.080/1990, conhecida como Lei Orgânica da Saúde, estabelece as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde. Ela define o acesso a medicamentos como parte integrante das ações de saúde, reforçando a importância da garantia desse direito. Os pacientes argumentam que têm o direito de acesso a tratamentos adequados, porém há escassez no sistema de saúde e, em razão da negativa ou omissão do poder público, precisam judicializar a questão.

Supremo Tribunal Federal (STF)

No tocante à obrigação de fornecer medicamento de alto custo (União, estados ou municípios) , o STF fixou a tese (tema 793) de que esses entes são solidariamente responsáveis pelo fornecimento do medicamento, cabendo o ressarcimento ao ente que custeou.

Assim, a judicialização pode ser vista como um mecanismo de pressão sobre os sistemas de saúde, incentivando revisões de políticas e a inclusão de medicamentos especiais nos protocolos de tratamento. Essa pressão pode contribuir para a ampliação do acesso a medicamentos essenciais para um maior número de pessoas.

No entanto, a judicialização de medicamentos de alto custo enfrenta desafios significativos. Um dos principais desafios é o impacto financeiro que essa prática pode gerar nos sistemas de saúde. Como exemplo, o medicamento  Zolgensma, usado para tratamento da Atrofia Muscular Espinhal (AME) tipo I, que foi incluído no rol de medicamentos e procedimentos que possuem cobertura dos planos de saúde no Brasil, chega a custar R$ 6 milhões. Mas não precisa se tratar apenas de doenças raras, basta verificar os preços dos medicamentos oncológicos de uso domiciliar, que chegam a R$50 mil por mês. 

Dados governamentais revelam que, entre 2010 e 2019, houve um aumento de 727% nos gastos com medicamentos judicializados no Brasil. Essa expressiva elevação dos custos demonstra o impacto financeiro desse processo e a necessidade de buscar soluções equilibradas para garantir o acesso à saúde, posto que a inclusão de todos eles pode comprometer a sustentabilidade financeira dos sistemas, desviando recursos que poderiam ser utilizados em outras áreas da saúde e com maior possibilidade de êxito. 

Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido (NHS), por exemplo, vem adotando algumas medidas para lidar com o preço elevado desses medicamentos.  O Instituto Nacional de Saúde e Assistência Excellence (Nice) rejeitou o medicamento chamado olaparib”, produzido pela AstraZeneca, para tratamento de câncer de ovário, ao preço mensal de £4.200 (R$26.192,19) ao argumento de que fere a diretriz de Nice que diz que um medicamento não deve custar mais do que £30.000 (R$187.087,06) por ano adicional de vida de um paciente, ajustado pela qualidade. (Fonte: PFARMA.com.br). Não se está a dizer que doenças que demandam medicamentos de alto custo não merecem ser tratadas, porém não se pode deixar de pensar no custo-benefício dos tratamentos, diante dos princípios da bioética da beneficência e não maleficência, bem como da questão da obstinação terapêutica. 

Outro desafio é a desigualdade de acesso que pode surgir a partir da judicialização. Nem todos os pacientes possuem recursos financeiros e conhecimento jurídico para buscar seus direitos por meio do sistema judiciário. Isso pode resultar em disparidades no acesso à saúde, favorecendo apenas aqueles que têm condições de recorrer ao sistema judiciário.

Para enfrentar os desafios da judicialização de medicamentos de alto custo, é fundamental buscar perspectivas que equilibrem o direito ao acesso à saúde com a sustentabilidade dos sistemas de saúde. Algumas medidas podem ser adotadas, tais como :

1. Avaliação técnica e científica: Fortalecer comitês de avaliação de tecnologias em saúde, responsáveis por analisar a eficácia e o custo-benefício dos medicamentos, antes de sua inclusão nos sistemas de saúde. Isso pode garantir que apenas medicamentos comprovadamente eficazes e de custo justificável sejam incorporados.

2. Agilidade no processo regulatório: Investir em eficiência para a agência regulatória, com implementação de processos ágeis e transparentes de registro e aprovação de medicamentos. Neste ponto, podemos citar avanços já que, pela nova legislação, o prazo para a ANS concluir a análise do processo de inclusão de procedimentos e medicamentos na lista dos obrigatórios será de 180 dias, prorrogáveis por mais 90 dias. O prazo cai para 120 dias, prorrogáveis por 60, no caso de tratamentos contra o câncerNo ano de 2023, já tivemos quatro atualizações do rol da ANS (clique para o site oficial ANS). Tal medida reduz a necessidade de recorrer à judicialização, garantindo um acesso mais rápido aos medicamentos necessários.

3. Parcerias público-privadas: Estabelecer parcerias entre o setor público e privado para viabilizar o acesso a medicamentos especiais, buscando soluções que envolvam o compartilhamento de custos e recursos.

4. Investimento em pesquisa e inovação: Estimular a pesquisa científica e o desenvolvimento de novos medicamentos,  

Portanto, a judicialização de medicamentos de alto custo é um fenômeno complexo, que envolve questões bioéticas, econômicas e legais. Embora seja um mecanismo para garantir o acesso a medicamentos de alto custo, apresenta desafios significativos, como o impacto financeiro e a desigualdade de acesso. É fundamental buscar soluções que equilibrem o direito à saúde com a sustentabilidade dos sistemas de saúde, por meio de avaliações técnicas, agilidade no processo regulatório e parcerias público-privadas, além de investimento em pesquisa e inovação e em educação e conscientização dos pacientes e da sociedade.

A busca por políticas de saúde eficazes é essencial para garantir o acesso equitativo a medicamentos de alto custo, evitando a necessidade recorrente de recorrer à judicialização para concretizar o direito à saúde. Este objetivo só será alcançado com o engajamento de todos os Poderes, profissionais envolvidos e sociedade em geral, afinal a saúde é um direito de todos.

Ana Claudia Brandão
Ana Claudia Brandão

Ana Claudia Brandão de Barros Correia Ferraz é uma jurista de destaque e juíza do Estado de Pernambuco. Sua trajetória acadêmica é marcada por sólida formação em Direito, com doutorado pela Universidade Federal de Pernambuco e pós-doutorado na prestigiada Universidad de Salamanca, Espanha, e na renomada Harvard University, Estados Unidos. Sua atuação no meio jurídico abrange áreas complexas e relevantes, com especialização em Biodireito e Bioética, nas quais tem contribuído de forma significativa.

Além de sua atuação no Poder Judiciário, Ana Claudia também se destaca como escritora. Seus artigos e publicações científicas têm sido reconhecidos por sua relevância e impacto no cenário jurídico e acadêmico. Entre suas obras literárias de destaque, estão os livros "Reprodução Humana Assistida e suas Consequências nas Relações de Família: A Filiação e a Origem Genética sob a Perspectiva da Repersonalização" (Editora Juruá, edições 2009 e 2016) e "Filhos para Cura: O Bebê Medicamento como Sujeito de Direito" (Editora Revista dos Tribunais, 2020).

Ana Claudia também é uma colaboradora quinzenal do jornal Folha de Pernambuco, onde escreve sobre temas relacionados a Direito e Saúde. Suas reflexões e análises têm alcançado grande repercussão e contribuído para o debate público em torno de questões jurídicas e de saúde.

Com um currículo acadêmico e profissional impressionante, Ana Claudia Brandão de Barros Correia Ferraz se consolida como uma referência no campo do Direito, especialmente em Biodireito e Bioética. Sua dedicação à pesquisa, seu compromisso com a justiça e sua habilidade como escritora fazem dela uma influente e respeitada figura no meio jurídico, com relevância nacional e internacional.

Artigos: 27

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