Dependência química e o sistema de saúde brasileiro

Estamos preparados para a descriminalização das drogas?

A dependência química é um problema de saúde pública que afeta milhões de pessoas em todo o mundo, e o Brasil não é exceção. Com o debate sobre a descriminalização das drogas ganhando força no país, surge uma questão crucial: o sistema de saúde brasileiro está preparado para cuidar dos dependentes químicos? Este artigo busca analisar a capacidade atual do sistema de saúde brasileiro para lidar com a dependência química, considerando os recursos disponíveis, as políticas públicas existentes e os desafios enfrentados, sob a perspectiva do biodireito e da medicina especializada na área.

Recursos Disponíveis
Sistema Único de Saúde (SUS) é o principal sistema de saúde pública do Brasil, responsável por oferecer uma gama de serviços gratuitos para toda a população, incluindo tratamento para dependência química. A rede de atendimento para dependentes químicos no SUS inclui os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), que são pontos de referência para o acolhimento de pessoas com transtornos mentais, incluindo dependência química. Além dos CAPS, o SUS também oferece unidades de acolhimento e comunidades terapêuticas. No entanto, a disponibilidade desses serviços varia significativamente em todo o país, e muitas regiões enfrentam falta de recursos e profissionais qualificados. Além disso, o sistema de saúde privado oferece tratamento para dependência química, mas os custos associados muitas vezes tornam esses serviços inacessíveis para uma grande parte da população, sem falar que muitas operadoras de saúde não possuem rede credenciada e relutam em arcar com os altos custos dos tratamentos. Leia e entenda um pouco mais sobre Saúde mental e cobertura pelos planos de saúde.

Vale lembrar que a partir da Lei n. 10216/2001 a política de internação de pessoas com transtornos mentais é medida excepcional e temporária, em casos indispensáveis para controle de surtos. Ademais, para concretizar tal política, o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução n. 487/2023, que extingue os manicômios judiciários no Brasil, cabendo ao sistema de saúde (e não carcerário) absorver essas pessoas, ainda que perigosas para a sociedade.

Nesse contexto, os impactos financeiros da decisão no sistema de saude brasileiro não podem ser desprezados.

Políticas Públicas Existentes
O governo brasileiro tem implementado várias políticas públicas para lidar com a dependência química. A Política Nacional de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas (Lei nº 10.216/2001é um exemplo chave.  Esta política busca promover a saúde mental, prevenir o uso de álcool e outras drogas, e oferecer tratamento e reabilitação para dependentes químicos. Ela é implementada através de uma rede de serviços de saúde mental, incluindo os CAPS. Além disso, o governo tem investido em programas de prevenção e educação, bem como em treinamento para profissionais de saúde. Por exemplo, o Programa Nacional de Prevenção ao Uso de Drogas nas Escolas (PREVINE) visa prevenir o uso de drogas entre crianças e adolescentes através de ações educativas nas escolas. Além disso, o governo tem promovido treinamento para profissionais de saúde sobre o manejo da dependência química, visando melhorar a qualidade do atendimento oferecido.

Estatísticas, Percentagens e Opiniões de Especialistas em Saúde
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de 31 milhões de pessoas em todo o mundo têm transtornos por uso de drogas, e aproximadamente 11 milhões usam drogas injetáveis . No Brasil, estima-se que cerca de 1,7 milhões de pessoas sejam dependentes de drogas ilícitas. Dr. Antonio Geraldo da Silva, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), afirma que a “quantidade segura para consumo da maconha é zero”, destacando os riscos associados ao consumo de cannabis.
Além disso, o Conselho Federal de Medicina (CFM) e a ABP publicaram uma nota pública reafirmando seu posicionamento contrário à descriminalização da maconha no Brasil. As entidades argumentam que a liberação ou flexibilização do uso de drogas pode resultar no aumento do consumo, comprometimento da saúde (individual e coletiva) e fortalecimento do narcotráfico.

Desafios Jurídicos e Institucionais
O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, expressou sua oposição à possibilidade de descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal pelo STF, chamando-a de “equívoco grave”. Ele argumentou que a decisão sobre tal questão cabe exclusivamente ao Congresso Nacional e não pode ser contrária à lei vigente. Pacheco também classificou a descriminalização sem discussão no Congresso e sem criação de programas de saúde pública como uma “invasão de competência do Poder Legislativo”.

O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, durante sessão

Além disso, o relatório mundial sobre drogas de 2023 do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) alerta para a convergência de crises e a contínua expansão dos mercados de drogas ilícitas. O relatório destaca que a pandemia de COVID-19 exacerbou os problemas existentes relacionados ao uso de drogas e ao tráfico ilícito.

António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas (ONU)

Portanto, a discussão ultrapassa as fronteiras dos limites da competência dos poderes legislativo e judiciário, pois envolve questões de estrutura do sistema de saúde para cuidar e tratar efetivamente dos dependentes químicos, que muitas vezes são abandonados pelas próprias famílias.

Conclusão
O sistema de saúde brasileiro enfrenta vários desafios para cuidar dos dependentes químicos, incluindo falta de recursos, falta de integração entre os serviços de saúde e estigma associado à dependência química. Apesar desses desafios, tem sido implementadas várias políticas públicas para lidar com a dependência química e promover a saúde mental. No entanto, é crucial considerar todos esses aspectos ao tomar decisões sobre a descriminalização das drogas no Brasil. A eventual experiência tida como “exitosa” de outros países, por si só, não pode servir como norte para esta decisão no contexto brasileiro , diante da complexidade do nosso sistema de saúde e  das peculiaridades regionais. É certo que o reconhecimento da autonomia, princípio bioético e jurídico, requer sempre a contrapartida da responsabilidade e o Estado deve estar preparado para lidar com as consequências, oferecendo rede de amparo adequada para os dependentes químicos e sua família, seguramente afetada pelo problema.

A posição contrária à descriminalização das drogas no Brasil é respaldada por várias razões válidas e fatos preocupantes. Primeiramente, as instituições médicas respeitáveis,como o Conselho Federal de Medicina (CFM) e a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), argumentam que a maconha e outras drogas ilícitas causam dependência grave, danos físicos e mentais, e podem precipitar ou agravar quadros psicóticos e comorbidades mentais. Além disso, o consumo de drogas está associado a uma maior incidência de acidentes de trânsito, homicídios e suicídios. Assim, o impacto da decisão é enorme na saúde brasileira, assim como na política de segurança pública.

Portanto, em que pese se entender que caberia ao Congresso Nacional, após ampla discussão com a sociedade, exercer legitimamente a  opção legislativa acerca da descriminalização, espera-se que sejam levadas em consideração as questões de SAÚDE que envolvem o tema, para que os dependentes químicos e suas famílias, ao final, não fiquem relegados  à própria sorte.

Ana Claudia Brandão
Ana Claudia Brandão

Ana Claudia Brandão de Barros Correia Ferraz é uma jurista de destaque e juíza do Estado de Pernambuco. Sua trajetória acadêmica é marcada por sólida formação em Direito, com doutorado pela Universidade Federal de Pernambuco e pós-doutorado na prestigiada Universidad de Salamanca, Espanha, e na renomada Harvard University, Estados Unidos. Sua atuação no meio jurídico abrange áreas complexas e relevantes, com especialização em Biodireito e Bioética, nas quais tem contribuído de forma significativa.

Além de sua atuação no Poder Judiciário, Ana Claudia também se destaca como escritora. Seus artigos e publicações científicas têm sido reconhecidos por sua relevância e impacto no cenário jurídico e acadêmico. Entre suas obras literárias de destaque, estão os livros "Reprodução Humana Assistida e suas Consequências nas Relações de Família: A Filiação e a Origem Genética sob a Perspectiva da Repersonalização" (Editora Juruá, edições 2009 e 2016) e "Filhos para Cura: O Bebê Medicamento como Sujeito de Direito" (Editora Revista dos Tribunais, 2020).

Ana Claudia também é uma colaboradora quinzenal do jornal Folha de Pernambuco, onde escreve sobre temas relacionados a Direito e Saúde. Suas reflexões e análises têm alcançado grande repercussão e contribuído para o debate público em torno de questões jurídicas e de saúde.

Com um currículo acadêmico e profissional impressionante, Ana Claudia Brandão de Barros Correia Ferraz se consolida como uma referência no campo do Direito, especialmente em Biodireito e Bioética. Sua dedicação à pesquisa, seu compromisso com a justiça e sua habilidade como escritora fazem dela uma influente e respeitada figura no meio jurídico, com relevância nacional e internacional.

Artigos: 27

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