Doação Presumida de Órgãos após a Morte: Um Novo Horizonte no Brasil

Projeto de Lei visa transformar todos em doadores, com respaldo do Conselho Federal de Medicina

Com o título de maior programa público de transplante de órgãos, tecidos e células do mundo, o Sistema Único de Saúde (SUS) financia cerca de 95% dos transplantes no território nacional, destacando-se como o segundo maior transplantador do mundo, perdendo apenas para os EUA. O paciente no processo de transplante tem assistência integral e gratuita, que inclui os exames preparatórios, a cirurgia, o acompanhamento e os medicamentos necessários no pós-transplante, todos providenciados pela rede pública.

A doação de órgãos é um campo que carrega consigo uma mistura de esperança e questionamentos éticos e religiosos profundos. No Brasil, as leis que regem a doação de órgãos têm oscilado entre o consentimento explícito e a doação presumida, espelhando as transformações na consciência pública e nas inclinações políticas. 

Neste artigo, vamos passear pela trajetória da doação de órgãos em terras brasileiras, com uma atenção especial ao cenário atual e às mudanças que estão sendo propostas.

A jornada de um paciente na espera por um transplante é marcada por esperança e desafios, onde a Lei de Transplantes garante que a vontade da família seja respeitada no momento da doação. Portanto, nem sempre o fato de uma pessoa manifestar, em vida, a intenção de ser doador, significa que a sua vontade irá prevalecer. Isto porque, na prática, a palavra final é da família. Por isso, é importante buscar equilibrar a autonomia da pessoa, da sua família e a necessidade de órgãos para transplante.

A celebração do Dia Nacional da Doação de Órgãos, em 27 de setembro, é um convite à reflexão sobre a importância da doação, como um gesto de solidariedade que tem o poder de transformar vidas e proporcionar esperança àqueles que aguardam um transplante, bem como sobre a necessidade de desmistificar questões que cercam o tema.

Desvendando Mitos:
Muitos mitos cercam a doação de órgãos, como o medo da desfiguração ou da venda ilegal de órgãos, sendo imprescindível uma discussão informada  e transparente para avançar nessa temática . 

A desinformação cria uma barreira invisível que muitas vezes impede as pessoas de tomarem a decisão de doar. A ideia de que a doação pode atrasar ou interferir nos rituais fúnebres, ou que a idade ou condições de saúde crônicas são impeditivos para a doação, necessita  ser desfeita. É crucial esclarecer que a doação de órgãos é conduzida com o máximo respeito ao doador e seus entes queridos, e que muitas condições médicas não impedem a doação. Ao desvendar esses mitos e fornecer informações corretas, podemos criar um ambiente mais acolhedor e favorável à doação de órgãos, um passo essencial para derrubar tabus e salvar mais vidas. 

A Doação Presumida: Um Retorno ao Passado?
A lei nº 9434/1997 prevê dois tipos de doadores: o primeiro é o doador vivo. Qualquer pessoa pode ser doadora, desde que concorde com a doação, que não prejudique a sua própria saúde e que esteja plenamente ciente dos riscos envolvidos. O doador vivo pode doar órgãos como um dos rins, parte do fígado, parte da medula óssea ou parte do pulmão. Segundo a referida lei, parentes até o quarto grau e cônjuges podem ser doadores. Em caso de não haver parentesco, é necessária autorização judicial.

O segundo tipo é o doador falecido. São pacientes com diagnóstico de morte encefálica, tecnicamente declarada. Os órgãos doados vão para pacientes que necessitam de um transplante e estão aguardando em lista única, definida pela Central de Transplantes da Secretaria de Saúde de cada estado, e controlada pelo Sistema Nacional de Transplantes. Portanto, prevalece a autonomia dos familiares na decisão final sobre doação após a morte.

Mas nem sempre foi assim. Entre 1997 e 2001, o Brasil experimentou a doação presumida que foi posteriormente revogada pela Lei 10.21/2001 devido a desafios culturais e à falta de informação adequada. Surgiram boatos, dúvidas sobre a possibilidade de tráfico de órgãos e até de assassinatos com essa finalidade. Assim, a experiência mostrou que a aceitação pública e a informação adequada são cruciais para o sucesso de qualquer modelo de doação.

Entendendo a Doação Presumida
Recentemente, o tema da doação de órgãos esteve em evidência em razão de um transplante de coração realizado pelo famoso apresentador de televisão, Faustão, que obteve o órgão de maneira célere, despertando nas pessoas o desejo de ter igual sorte e de entender mais sobre o tema.

Nesse compasso, foi proposto o Projeto de Lei nº 1774/2023 que reacendeu a discussão sobre a doação presumida no Brasil, propondo uma alteração na Lei nº 9.434/97. Segundo o projeto, presume-se autorizada a doação post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano, para transplantes ou outra finalidade terapêutica, salvo manifestação em contrário. Todo indivíduo que não desejar dispor de seus órgãos, tecidos ou partes do corpo para doação deverá registrar em documento público de identidade, o seu desejo de não ser doador. A iniciativa é apoiada por diversos deputados e instituições médicas, incluindo o Conselho Federal de Medicina.

A retomada deste debate é um reflexo da evolução contínua das discussões éticas e sociais em torno da doação de órgãos. O Projeto de Lei nº 1774/2023 não apenas propõe uma mudança legislativa, mas também convida a sociedade a refletir sobre a importância da doação de órgãos presumida e do impacto positivo que essa mudança de modelo pode proporcionar . 

A discussão renovada também destaca a necessidade de um diálogo aberto entre os cidadãos, profissionais médicos, legisladores e outros stakeholders relevantes. Este diálogo pode ajudar a abordar preocupações, esclarecer mal-entendidos e construir um consenso sobre como avançar de maneira que se respeitem os direitos individuais e se atenda às necessidades críticas de saúde pública. 

O Cenário Internacional:
A regulamentação da doação presumida varia globalmente. Países como França, Bélgica, Noruega, Croácia, Áustria, República Tcheca e Holanda aderiram a esse modelo. Enquanto alguns países enfrentam desafios, outros, como a Espanha, alcançaram sucesso ao equilibrar o consentimento presumido com a aprovação familiar, criando um ambiente propício para a doação de órgãos.

Outro exemplo recente vem do Reino Unido, onde foi proposto um plano para incentivar a doação de órgãos através de aplicações de passaporte. Segundo uma matéria do jornal The Sun, os cidadãos britânicos serão convidados a se tornarem doadores de órgãos quando solicitarem seus passaportes, numa tentativa de aumentar o registro de doadores. Este sistema opt-out assume que todos estão dispostos a doar, mas as famílias podem impedir a doação se o indivíduo não confirmar sua vontade antes de falecer. A iniciativa visa facilitar o registro de doação, integrando-o a processos cotidianos como a renovação do passaporte, e assim, potencialmente salvar mais vidas.

A Espanha e o Reino Unido são exemplos de como a adaptação e a inovação nas políticas de doação podem criar ambientes propícios para aumentar as taxas de doação de órgãos, salvando mais vidas e reduzindo o tempo de espera para transplantes.

Desafios e Perspectivas:
A doação de órgãos é um tema que evoca emoções profundas e questionamentos éticos. Será que a doação presumida poderia ser a chave para aumentar as taxas de doação no Brasil? A experiência internacional sugere que a educação e a comunicação eficazes  são cruciais para o sucesso de qualquer modelo de doação.

Paralelamente, temos discussões jurídicas que envolvem a doação presumida que merecem destaque. Autonomia individual, papel da família e políticas públicas de saúde são aspectos que demandam uma análise jurídica sensível e bem fundamentada. Além disso, os precedentes judiciais formam um pano de fundo que pode influenciar significativamente as decisões em casos de doação presumida, demandando análise meticulosa para que não se viole o princípio da dignidade humana e do respeito à autodeterminação de cada um, especialmente quanto ao destino dado ao seu próprio corpo.

Portanto, o tema nos convida a refletir sobre nosso papel individual e coletivo nesta caminhada. Como sociedade, temos a responsabilidade de nutrir um diálogo informado e compassivo, que respeite  tanto a dignidade humana quanto a dádiva da vida que a doação de órgãos representa. O debate sobre a doação presumida é um passo valioso nessa direção, abrindo caminho para um futuro onde a solidariedade e a empatia guiam nossas ações e legislações, trazendo esperança para aqueles que sonham com a possibilidade de seguir vivo.

Salve uma vida ! Seja um doador !!! Beijos no coração 

Ana Claudia Brandão
Ana Claudia Brandão

Ana Claudia Brandão de Barros Correia Ferraz é uma jurista de destaque e juíza do Estado de Pernambuco. Sua trajetória acadêmica é marcada por sólida formação em Direito, com doutorado pela Universidade Federal de Pernambuco e pós-doutorado na prestigiada Universidad de Salamanca, Espanha, e na renomada Harvard University, Estados Unidos. Sua atuação no meio jurídico abrange áreas complexas e relevantes, com especialização em Biodireito e Bioética, nas quais tem contribuído de forma significativa.

Além de sua atuação no Poder Judiciário, Ana Claudia também se destaca como escritora. Seus artigos e publicações científicas têm sido reconhecidos por sua relevância e impacto no cenário jurídico e acadêmico. Entre suas obras literárias de destaque, estão os livros "Reprodução Humana Assistida e suas Consequências nas Relações de Família: A Filiação e a Origem Genética sob a Perspectiva da Repersonalização" (Editora Juruá, edições 2009 e 2016) e "Filhos para Cura: O Bebê Medicamento como Sujeito de Direito" (Editora Revista dos Tribunais, 2020).

Ana Claudia também é uma colaboradora quinzenal do jornal Folha de Pernambuco, onde escreve sobre temas relacionados a Direito e Saúde. Suas reflexões e análises têm alcançado grande repercussão e contribuído para o debate público em torno de questões jurídicas e de saúde.

Com um currículo acadêmico e profissional impressionante, Ana Claudia Brandão de Barros Correia Ferraz se consolida como uma referência no campo do Direito, especialmente em Biodireito e Bioética. Sua dedicação à pesquisa, seu compromisso com a justiça e sua habilidade como escritora fazem dela uma influente e respeitada figura no meio jurídico, com relevância nacional e internacional.

Artigos: 27

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