O universo da medicina, em sua amplitude e complexidade, sempre se fundamentou na ética, confiança e no compromisso de cuidar da saúde humana. Entretanto, com o advento das redes sociais e a crescente influência de padrões estéticos e da busca desenfreada por uma “cura” para as doenças, promovidos por influenciadores e pela mídia, assistimos a uma popularização de procedimentos e intervenções médicas que, outrora, eram vistos com mais cautela. Esse cenário, muitas vezes impulsionado por representações idealizadas, levanta questões cruciais sobre a responsabilidade civil e ética dos profissionais de saúde. É imperativo que os pacientes sejam inteiramente informados sobre os riscos e benefícios associados a qualquer procedimento. Além disso, a prática médica deve se basear em avaliações holísticas, considerando não apenas aspectos físicos, mas também psicológicos do paciente.
Atentos ao poder influenciador do mundo digital, os médicos clamavam por mais flexibilidade na promoção de seus serviços. E, finalmente, essa flexibilização veio com a recente publicação da Resolução nº 2336/2023, pelo Conselho Federal de Medicina, que entrará em vigor em 180 dias e que reflete uma tentativa de equilibrar a liberdade dos médicos de promover seus serviços com a necessidade de preservar a integridade e os princípios da profissão.
A norma tem sido muito festejada pelos médicos, justamente por contemplar a tão esperada liberdade em postagens em redes sociais, comerciais, etc. Contudo, com mais liberdade, vem, consequentemente, mais responsabilidade. Em uma era onde a informação é difundida em segundos, a veracidade e a ética na publicidade médica são mais vitais do que nunca.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) já havia expressado preocupações sobre a disseminação de informações médicas nas redes sociais, destacando que a veracidade e a ética são fundamentais nesse processo. Isto porque, apesar da necessidade de adequação à nova realidade, a norma deve ser aplicada em consonância com o que o nosso ordenamento jurídico preceitua no tocante à proteção dos direitos da personalidade e da dignidade humana.
Assim, em meio às novidades, a responsabilidade ética e jurídica, bem como a aderência às diretrizes regulatórias, se destacam como pilares fundamentais neste novo cenário. Alguns pontos merecem atenção especial.
Privacidade do Paciente:
A questão da privacidade do paciente nas redes sociais é de extrema importância. Mesmo com o consentimento expresso, a exposição pública pode levar a questões delicadas e não antecipadas. A exposição online pode resultar em julgamentos, estigma ou outras consequências emocionais para os pacientes. Além disso, uma vez que uma imagem é publicada online, seu controle pode ser perdido, com potenciais usos indevidos por terceiros. Por isso, merece ponderação o direito do paciente à privacidade e à dignidade e a utilidade educativa de uma imagem.
A liberdade e a responsabilidade de postar fotos:
Uma das mudanças mais significativas dessa nova resolução é a permissão concedida aos médicos para publicar fotos de ‘antes e depois’ dos pacientes. Enquanto esta é uma ferramenta poderosa para mostrar o potencial dos procedimentos e a habilidade do médico, ela vem com certas salvaguardas:
Todas as imagens devem ter o consentimento expresso dos pacientes e não podem passar por edições que alterem a verdadeira natureza dos resultados.
As imagens ‘antes e depois’ devem ser acompanhadas por informações que descrevam os potenciais resultados – sejam eles satisfatórios, insatisfatórios ou acompanhados de complicações.
O médico deve procurar oferecer uma representação diversificada, mostrando resultados em diferentes biotipos e faixas etárias, e cobrindo as evoluções imediatas, médio e longo prazo.
Vale ressaltar que essa permissão pode ser uma faca de dois gumes. Enquanto tais imagens têm o poder de informar e educar o público sobre os potenciais resultados de procedimentos médicos, elas também carregam o risco de distorcer a realidade. Se as fotos publicadas não refletem a ampla gama de resultados possíveis — considerando biotipos diferentes, reações individuais a procedimentos e variáveis pós-operatórias — pode-se criar uma imagem distorcida da realidade. Isso pode levar pacientes a esperar resultados que talvez não sejam possíveis em suas situações específicas, gerando frustração e até mesmo conflitos entre médicos e pacientes. Dr. Paulo Torres, membro da Associação Latino-Americana de Comunicação em Saúde (ALACS), destaca:
Selfies no consultório: uma prática agora permitida:
A prática, antes questionável, de médicos tirando selfies com pacientes agora é permitida, contanto que seja feita sem sensacionalismo ou concorrência desleal. Isso é particularmente relevante quando o paciente em questão é uma celebridade, já que tais imagens podem gerar um buzz considerável nas redes sociais.
Transparência e Educação:
A nova resolução é clara sobre a necessidade de transparência. As postagens, seja de resultados, indicações de produtos medicinais ou outras informações, devem ser sempre educativas. E enquanto médicos podem agora compartilhar imagens de suas clínicas e instrumentos de trabalho, assim como valores cobrados, a propaganda nunca deve ser comercial ou vender produtos.
- Venda ou comercialização de produtos, desde medicamentos até suplementos;
- Desencorajar a vacinação ou ir contra tratamentos comprovados e aprovados pela Anvisa;
- Garantir resultados, considerando a individualidade de cada paciente;
- Fazer afirmações falsas sobre especialidades, confundindo títulos de pós-graduação com especializações.
Responsabilidade Civil:
De acordo com o Código Civil (Lei 10.406/2002): Art. 927: “Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.” Ou seja, se uma pessoa, por sua ação ou omissão, causar dano a outra, seja esse dano material ou moral, ela terá a obrigação de indenizar, ou seja, reparar o prejuízo causado.
No vasto campo da medicina, a responsabilidade civil emerge como instrumento de justiça e reparação quando procedimentos são executados de forma negligente ou por indivíduos inadequadamente qualificados. Pacientes, ao confiarem seu bem-estar e saúde nas mãos de supostos especialistas, têm a expectativa de tratamento seguro e adequado. Contudo, nos lamentáveis casos envolvendo imperícia de profissionais, o direito entra em cena para assegurar que o lesionado receba a devida reparação. O dano, muitas vezes irreversível, provocado por estes profissionais desqualificados, torna imperativo que a responsabilidade civil seja invocada para proteger a integridade física e psicológica dos pacientes e, igualmente, reforçar a confiança da sociedade no sistema de saúde.
Importante destacar que as clínicas médicas, ao prestarem serviços, estão sujeitas às regras do Código de Defesa do Consumidor, inclusive no que tange à responsabilidade civil objetiva (que independe da comprovação de culpa), o que inclui a aplicação da regulamentação relativa à propaganda enganosa e responsabilização pelos danos por ela causados. Segundo o art. 37 do Código de Defesa do Consumidor, uma propaganda é considerada enganosa quando induz o consumidor ao erro. Ou seja, quando ela traz uma informação falsa que faz com que a pessoa tenha uma ideia errônea sobre o que está sendo ofertado. É imprescindível, portanto, que a publicidade médica tenha a clareza necessária para evitar que pacientes sejam levados a erro em prejuízo à sua saúde.
Risco maior de Mercantilização da Medicina?
A linha entre informação e publicidade pode ser tênue. Com mais liberdade para mostrar seus resultados e práticas, os médicos podem ser tentados, mesmo que inadvertidamente, a comercializar seus serviços de forma excessiva. Isso pode corroer a confiança essencial na relação médico-paciente e levar a uma percepção de que a medicina é meramente um negócio. Mariana Oliveira, representante do Conselho de Ética Médica Internacional (CEMI), ressalta: “A medicina deve permanecer, em sua essência, uma profissão dedicada ao bem-estar e saúde do paciente, e não se transformar em uma mera transação comercial.”
O cenário clama pela Bioética e pelo Biodireito que emergem como pilares essenciais nessa discussão. Eles atuam não apenas como uma salvaguarda contra práticas negligentes ou mal-intencionadas, mas também como uma bússola que orienta tanto profissionais quanto pacientes sobre os caminhos éticos e legais a serem seguidos.
Por um lado, a Bioética questiona a moralidade e as consequências das decisões tomadas na medicina. Ela nos faz refletir sobre os reais motivos por trás da escolha de um procedimento e se os pacientes estão verdadeiramente informados.
De outro turno, o Biodireito estabelece as bases legais para garantir que os direitos dos pacientes sejam protegidos. Ele oferece mecanismos de responsabilização em casos de danos e garante que haja transparência nas práticas médicas.De todo o exposto, pode-se afirmar que a adequação das regras de publicidade médica à realidade social é de suma importância para o desenvolvimento das práticas médicas e difusão da evolução científica. Entretanto, enquanto a medicina busca se adaptar às demandas modernas e às ferramentas de comunicação digital, a essência de sua missão permanece a mesma: priorizar a saúde e o bem-estar do paciente. Neste cenário em constante evolução, a bioética e o biodireito emergem como ferramentas indispensáveis para guiar a conduta dos profissionais, garantindo que a medicina continue sendo uma prática centrada na humanidade, e não se converta, simplesmente, em oferta de “serviços” com finalidade lucrativa.